Thursday, August 12, 2021

A Mulher Alpendrada


caminha ao largo

da Oliveira

a mulher alpendrada

 

o senso comum a exigir que se apresentasse

límpida

e sem cheiro

desagradável

tornava-a imprópria

para o uso público

 

as mãos estendem-se em concha

até aos pontos mais altos da secura

voltam vazias

aproveitando o próprio osso

como cabo da faca

com que atravessar

as Origens

e restituir

algo que lhe tinha sido retirado

 

a espessura

 

havia por fim a convicção de que

podia ser escoada

ainda estava só a começar

e eles já se empanturravam


                                                                                                Rita Grácio

                                                                                                Publicado na revista Inefável #13, 2016

https://inefavelsite.wordpress.com/13-2/

do calcário na garganta II


o bico de um corvo

indica o ponto em que as guerreiras marulham [

começo a alfabetação dos cacos

como se fossem coleccionáveis

e engulo de seguida

como se comunicar fosse uma vigília de gânglios

entre cascas de modernidade, ervilhas e

magnólias

 

] deve haver ainda uma alvorada vulvar

onde aplicar a polpa dos dedos salgados [

 

levo-me a espairecer ao eirado

em contracções crepusculares

recolho coágulos

cânticos

o som das rabecas

 

] ensina-me o movimento da água


poema publicado na revista Inefável #13, 2016

https://inefavelsite.wordpress.com/13-2/

Mesinha de Cabeceira do Quarto d’Avó


do lado direito do mata-moscas

o crucifixo com jesus

do lado esquerdo do mesmo mata-moscas

a virgem maria

serve de amparo

à carta que chegou ontem

não sabes ler nem escrever

habitas a tragédia das alumiadas

no corpo imóvel

uma vela castanha

suja o prato com os restos de rezas e ladainhas

 e um rádio a botões

 abafa os resultados da biópsia

 e o teu escarro



poema publicado na revista Inefável #13, 2016

https://inefavelsite.wordpress.com/13-2/

Wednesday, August 04, 2021

Sem aviso prévio

das contas que não se pagaram 

chega um aviso

antes do corte

ouvem-se os passos do vizinho

que vem dizer que há muito barulho

antes da polícia

vem no relatório a reprimenda

antes de nos porem no olho da rua


mas os amigos vão embora

sem dizer que não gostaram das festas

que a comida nunca era do seu agrado

que havia sempre muito barulho

e pó 


ou não terei ouvido

que havia sempre muito barulho

e pó


os amigos sorriram

acenaram com a cabeça

não voltaram


ou não os vi

estre pratos e espanadores

e uma lista de podcasts

que me avisa

dos seus favoritos

Monday, December 24, 2018

estamos a perder
nos
mas continuamos
a descascar pistachios
até que
nos
chegue a sede

nem sempre nos vêm as lágrimas aos olhos
quando vemos o vizinho
a partir um pé


mas aperta
o coração
quando nos dizem
que não é nada
foi de alguma coisa que comemos

e ficamos em silêncio
a ouvir as cascas


Wednesday, July 18, 2018

Bonanza


agora que a tempestade
passou
outras
areias
entram nos olhos
e tenho pouco espaço
de armazenamento.

vieram entregar-ma
num caixote
e tampouco
são rosas,
senhor não-binária.


nunca pensei
que fosse sinalizada

Friday, November 24, 2017

Sunday, November 05, 2017

Phoo-Doo


doing what
you love the most

dying of  what
you love the most

drying out what
you love the most

Saturday, September 30, 2017

Internamento/Admission


o desentendimento
é sobre o estatuto ontológico
da cefaleia.

numa escala de zero a dez
a minha cabeça vai explodir
mas nego lesões cutâneas.

são horas de comer.

imagino que os carrinhos de tabuleiros
são comboios a grande vitesse
a fazer parar macas camas
cadeiras de rodas. enfim tráfego
terrestre de tantas pessoas
no mesmo barco

à noite, o barulho
da ventilação não me deixa
dormir. fecho
os olhos, isto é
agora um motel americano
daqueles onde se fode muito
como se fosse a última vez

juro que lhe sinto 
a pontinha
do baço

à noite, o barulho
da ventilação não me deixa
dormir. fecho
aqui tosse-se muito
como se fosse a última vez

aqui tudo tem a textura
de uma última vez

no mesmo barco

suplico endovenoso, que aprendi
a dizer. e nada
de luz directa








Wednesday, June 28, 2017

cada família 
um alçapão.

para um lugar
muito escuro
escancarado

cada pé
a dizer não

faz-se raíz

Monday, June 19, 2017

  
com A., para A. 



não tinham dinheiro
para detalhes


o caminho dos incêndios

é perder filhos
              palácios


Thursday, June 01, 2017

mediterrâneo


nao vás à água


tive que

os deitar fora


passar ao largo

do mediterrâneo




cryme


assaltou uma casa

de flores

esterilizadas

ao tirar
[ou ao substituir por outras branduras
a mordaça                      

espalhou as abelhas

pelas gavetas

do seu corparmário.




Monday, May 29, 2017



não existe por si mesma



são precisas

águas paradas

instrumentos íntimos

par celas que



não limpa r e l a t a 




Monday, February 27, 2017

Tra-dedo-sãos

enrolar a língua

watch your tongue
não é olhar a língua

ao enrolar a língua
dá-se a morte do autor

poetic depth
poetic dead

sento-me a velar o morto
para depois

enrolar a língua



olhava para o penhasco
e dizia
vou-me matar
para tu não me matares
.
e acordava
com terra na boca
e o cabelo salgado

Monday, November 28, 2016

Para A.

nessa altura
estava
verdadeira
mente apaixonada por demo
lições
um estudo para a ruína
ensaia
as ausências
sempre à volta
não era fixo
- isto parece um coração, não parece?
agora é tarde.
sempre gostei de ver
com o corpo todo
sair 
por este portão
fora


entaramelada

se eu soubesse dizer - dizia - se eu não soubesse - digo - se eu soubesse - não dizer- dizia - se eu dizesse - sabia - não digo -
dedo
medo

morde
foge

procuro um crepúsculo antigo
onde arder





entaramelada

se eu soubesse dizer - dizia - se eu não soubesse - digo - se eu soubesse - não dizer- dizia - se eu dizesse - sabia - não digo -
dedo
medo

morde
foge

procuro um crepúsculo antigo

onde arder

tampouco o risco ou o rasto




Thursday, May 26, 2016

"homesickness"


casa onde não há pão
todos ralham
e ninguém tem razão

casa onde não há pão
há casa
e renda

casa onde não há pão
amores todos os dias
enlatados

casa onde
não há