Sunday, November 26, 2006

do princípio do mundo até ao fim do mundo

Querido Cesariny (mário) de Vasconcelos:
tu, que me disseste um dia "ama como a estrada começa"

tu que fazes o "exercício espiritual" de "dizer rosa em vez de ideia", de dizer "azul em vez de pantera", de "dizer o mundo em vez de um homem"

tu que vives "no país onde os homens são só até ao joelho

/e o joelho que bom está tão barato"

tu que sabes onde "há praças onde esculpir um lírio
zonas subtis de propagação do azul
gestos sem dono barcos sob as flores"

tu, que és "um homem, um poeta, uma máquina de passar vidro colorido, um copo, uma pedra" e que por tudo isso ou por nada disso
sentado ficaste para perder todos os eléctricos DELE porque os teus eléctricos "estavam perdidos por natureza própria"

e ainda assim, "o irresistível anseio de viajar/um só movimento trabalhado à mão".

tu, que tens a ciência dos navios e dos espelhos

tu, pintor,
às cinco da manhã de hoje terás gritado como outrora o fizeste na Pastelaria:
afinal o que importa é não ter medo (...)
fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

por isso
"hoje venho dizer-te que morreste e que velo pelo teu corpo
no meu leito (...)
mas tu ainda não sabes até que ponto morreste; vais até
à janela, aspiras com cuidado o oxigénio que o espaço
te oferece, apontas rindo a meiga criatura que pela rua
arrasta a sua condição de animal fulminado".


homenagem a Mário Cesariny, poeta, pintor, e muito mais, que morreu hoje, dia 26 de novembro, com 83 anos.
excertos de poemas retirados de: Cuadrado, Perfecto E. (1998) A única real tradição viva- antologia da poesia surrealista portuguesa. Lisboa: Assírio & Alvim. à excepção de um excerto retirado do poema "Pastelaria",que não está na antologia referida.

2 comments:

couve-flor. said...

perfeito(a).

riachos said...

belo texto!